Overdose de Naturez ou thanks God I Survived and I´m alive!
Quando me falaram que há pessoas que fazem menos exercício que eu e fizeram a trilha de 20 quilômetros que encarei ontem, acreditei. Que era só descida, pra baixo todo santo ajuda e só exigem condicionamento para as subidas, também botei fé. Que atravessar o rio só pode ser cruzá-lo de um lado para outro, confiei. Acreditar nas pessoas é a minha perdição. Como não dá para saber se estão ou não minimizando esporte de aventura quando temos vontade de experimentar isto, melhor prevenir do que remediar, nunca mais me meto a fazer rally a pé. Quando ouvia classificarem trilha de rally, jurava que era só um mais longo que o outro. Gente, posso jurar que participei de um episódio de LOST ou No Limite ontem. Eu não só andei das 9h às 18h, de Parelheiros a Itanhaém, como subi e desci em meio à natureza, morrendo de medo de cair, quebrar alguma coisa e não conseguirem me levar para o socorro, pois mal e mal estávamos nos levando solitariamente até o fim da trilha; caminhei entre pedras escorregadias e molhadas, resgatando um trauma de infância de quem já caiu em ambiente igualzinho e graças a Deus só quebrou o dente de leite; e andei rio adentro, com a água nas pernas, na cintura e no peito, com receio daquele trecho só acabar desembocando no mar, sentindo ao fim do dia uma espécie de "umidadetermia", em que o corpo entrou em estado de emergência, com aquela cólica reversa no fim das costas e emitindo um alarme: "banho quente! banho quente! banho quente!"
Ainda por cima os novatos andavam com as equipes experientes, que só pensam em terminar mais rápido para ganhar dos concorrentes, levando para a natureza aquele clima de competição do qual já temos uma overdose de segunda a sexta. Não dá nem tempo de curtir o verde de tanto que os malucos querem agilizar. Você pergunta:
- Não tinha uma parada para descanso ali atrás pelo mapa?
- Sim, mas não paramos pq estávamos atrasados!
- Pô, não dá para um pit stop rápido? Pelo menos abrir a mochila e pegar uma fruta? - ah sim, detalhe: oito horas de expedição mata adentro comendo só bolacha, salgadinho e maçã. Nunca fiz tanta promessa na vida: "juro que se sobreviver ilesa, nunca mais faço isso/ juro que ouvirei minha mãe/ juro que nunca mais reclamarei do trânsito/ juro que não tiro mais sarro das colegas que acham que mato já está suficiente no canteiro do meio da avenida ou que não fazem isso por não ter ar condicionado". Perguntava para os demais: "é sério que tem gente que se diverte com isto?" Havia alguns ali que estavam no quarto ou quinto rally, já tinham se perdido na mata à noite e feito expedições sem sinalização feita pelos instrutores, só com o mapa, cálculos dos praticantes e proteção divina. Como damos trabalho em vão ao andar de cima!
Achei uma falta de solidarieade a velocidade dos experientes para com os iniciantes. Acho que do meio em diante fui praticamente guinchada, pois implorava aos velhos de guerra:
- Me dá uma mão pra descer/ subir/ andar na água/ passar entre as pedras escorregadias e molhadas! - Pensava que era uma mulher descolada, mas me senti uma Barbie de salto no meio da floresta.
Quem me conhece não deve acreditar que fiz isso, pois em Sampa no plano já caio pra caramba e lá só levei escorregões light - sim meu santo deve ser realmente muito forte, mas juro que não abuso mais dele. Lembrei de uma colega que no Carnaval de Salvador, quando olhava em volta e só via um mar de gente, temia que se tivesse briga ou alguém passando mal, não tinha como fugir ou socorrer. Quando vi uns três tombos mais feios lá na serra, tinha a mesma sensação: se alguém se arrebentar aqui, não dá para ajudar, não tem para onde correr! Um colega comentou que perigoso é parar no farol de madrugada em Sampa e eu expliquei que não, pois nesta situação ainda podemos escolher furar o semáforo, mas lá não havia escolha: era chegar esfolado, cortado, dolorido, paralisado de medo ou frio, mas até o fim dos 20 km! Senti que não sou nada, não tenho o menor controle sobre mim mesma, que a Natureza me enfiava o dedão no nariz e gritava: "vou te colocar no seu lugar, você vai ver quem é que manda!"
Umas duas ou três vezes senti o guia vacilar entre uma trilha e outra e tive medo de virar manchete de jornal: "grupo de jovens se perde na floresta, passa fome, sede e é encontrado por bombeiros". Por mais que sentisse que o cara era do bem, também percebi que ele podia chegar num ponto dali, assaltar ou violentar todos os participantes e abandonar a gente no meio do nada, incomunicáveis, desolados e à mercê das forças naturais. Ainda bem que nunca tive fobia de cobras, aranhas e afins, caso contrário seria um cagaço a mais para administrar...
Minha amiga que me chamou para a mais radical empreitada da minha vida perguntava:
- Você ainda gosta de mim?
- Estou revendo nossa relação! - brincava. Numa coisa ela tem razão: tem um momento em que sua perna pára de doer e você não a sente mais, é como uma pedaço fantasma de você mesmo. E tudo que você pergunta para quem já fez vários rally deste tipo é normal, são como os médicos que também me disseram há 1 ano e 9 meses atrás que era super comum o corte da apendicite abrir inteiro em casa e você ver a carne lá dentro. Meu corpo me pedia: "não faz isso comigo! O que eu te fiz para merecer isto?"
As travessias na água davam quase que o tempo todo a sensação de que íamos congelar, quando por manobra divina não conseguia mais segurar a vontade de ir ao banheiro e sem querer querendo me esquentava de novo - se eles não paravam para descansar ou retirar comida da mochila, acha que dariam um break para tirar água do joelho? Nunca pensei que a urina pudesse me salvar. Depois que não sentia mais as pernas, o fim das costas doída por causa do excesso de umidade e tive receio de desmaiar de dor, não encontrar nem posto de saúde precário por perto ou colega com boa vontade para te descer no colo ou ombro.
Nem tudo são espinhos neste rally: a natureza é linda, conheci gente bonita e bacana, quando a trilha ficava plana ou nos trilhos do trem até parecia que dava para ser feliz por ali. Mas era um sobe-e-desce: de repente parecia tão gostoso, logo menos dava a impressão de que ia te matar, ficava lindo e rapidamente assustador... Seguindo a linha férrea foi um suspiro de alívio praticando este esporte de aventura, quando um militar comentou que um colega dentro de um túnel do trem enfiou o pé num tipo de buraco, rompeu todos os tendões e quando os companheiros tentaram socorrer, precisaram se encostar nas paredes e afastar, pois todos os trens resolveram passar naquele momento. Daí me choquei: como o organizador desta tentativa de suicídio coletivo da qual saí viva me disse para levar lanterna, mas se não tivesse, tudo bem? O bom de rally a pé é como TPM, plantão e aborrescência: grazie a Dio, uma hora acaba! Para mim é como quem faz lipo a torto e a direito: se tivesse senso de noção do risco, não faria nem amarrado ou sob tortura!
Para completar, na hora em que terminamos e encontramos os índios para a tão esperada confraternização, decepção total! Eles usavam roupas como as minhas e a maioria estava mais bêbado que as colegas do tipo "manguaça assumida" que conheço. Até perguntei aos organizadores se não tínhamos direito a Prozac ou Lexotan depois de ver os índios naquele estado de abandono e degredação. Parecia uma pegadinha sem fim: quando você achava que a parte líquida tinha acabado - afinal, ninguém me avisou que era uma trilha do tipo submersa, aparecia outra parte rio adentro, nunca de um lado para o outro. Como não se cancela uma maluquice dessas ao menor sinal de garoa?!
Ok, acrescentei ao meu repertório de "perde o amigo mas não perde a piada" uma série de historinhas comédia para as próximas conversas nas mesas das calçadas de botecos bons e baratos. Mas o que ainda não me conformo é: como o organizador não avisa que é preciso uma roupa específica que te proteja contra a umidade; um tênis super hiper mega bláster a prova de 8 horas de trilha - o meu foi se desmanchando para dentro dos meus pés e em boa parte do percurso me senti descalça; um boné que impeça os galhos e ramos de te machucarem; umas luvas que te permitam segurar nas árvores sem se espetar ou machucar um pouco mais, para não despencar trilha abaixo com o barro e causar o efeito dominó nos outros participantes; um outro par de sapatos com meias para o banho do final do dia, pois o que usou na caminhada ficará inutilizável; que máquinas fotográficas e celulares poderão ser mergulhados sem querer no rio quando tomar um escorregão - ainda não sei se perdi ou não o meu; que mulheres naqueles dias podem sair carregadas de cólica desta maratona; que um órgão fiscalizador impeça os eco chatos dos monitores ambientais de minimizarem perigosamente estas empreitadas em meio à mata fechada; que alguém que trabalhe com isso não te alerte para as abissais diferenças entre trilha e rally a pé para que consiga levantar no dia seguinte; e como empresas desta área não organizam este tipo de loucura coletiva num sábado, para que os mais desavisados se recuperem no domingo?
Transformei parte da trilha num aprendizado espiritual, tentando desviar a atenção do frio, medo e dor que nunca senti tão intensamente para a recitação de mantras, mas estes três incômodos na maior parte do tempo foram mais fortes que eu e quase saí de lá em camisa de força direto para o hospício Charcô. Gente, não precisamos nos arriscar tanto para sentir que superamos nossos limites, dá para conseguir a mesma satisfação em curso de teatro ou circo. Pela primeira vez na vida dei razão aos espíritas que considerava radicais quando classificavam de suicidas não conscientes quem fumava, bebia, se drogava ou arriscava-se demais desnecessariamente. Ontem senti que poderia morrer num instante e chegando lá do outro lado, teria que pedir desculpas ao Hômi, mas Ele teria toda a razão e direito de me dar os maiores puxões de orelha do mundo. Cada vez mais quero vivenciar o que meu amigo diz e eu assino embaixo: viver é tão delicioso, que a idéia de voltar várias vezes é sensacional. Qual a lógica de arriscar um game over antes da hora?
Quando ouvirem alguém dizer que quer encarar um rally a pé, esclareçam: a pessoa mais agitada do mundo adverte: é perigoso e competitivo demais, necessita-se de uma dose de preparo e falta de juízio sobre humanas. Quem me conhece sabe que não sou medrosa de carteirinha, ao contrário, ainda não sei se sou corajosa ou sem juízo demais...
0 Comments:
Postar um comentário
<< Home